Não tenho por hábito duvidar a priori do que as pessoas me dizem. E foi estranho o modo como o conheci.
Morei por exatos cinco anos em um apartamento sem garagem na Avenida Jabaquara, Praça da Árvore. Cansado de ter que andar na avenida à noite depois de guardar o carro, procurava e encontrei um novo estacionamento numa rua mais calma do bairro. O estacionamento tinha um preço razoável e fui o primeiro mensalista, o dono estava começando com o negócio ali. Tivera outro estacionamento próximo à faculdade de artes da Vila Mariana, mas perdeu tudo, foi para a rua. Agora recomeçava com um novo empreendimento com a herança de um irmão que morrera sem deixar herdeiros (trabalhou a vida inteira e morreu jovem), reformou o terreno (de 50 metros de comprimento) e construiu uma casinha no fundo para morar, e um banheiro independente na frente para os clientes. Não demorou a aparecer clientes: usuários das clínicas médicas ao redor, mensalistas e avulsos; um supermercado próximo combinou com ele de pagar R$ 1500 por mês para que os seus clientes pudessem parar os carros.
Genioso e temperamental, surgiram discussões e desentendimentos com os clientes e eles começaram a sumir assim como chegaram: o supermercado, avulsos, mensalistas e usuários de clínicas médicas ao redor. Com o dinheiro da herança comprou também um carro, um apartamento e uma bomboniere para os filhos na praia, mas a maior parte do tempo vivia somente com a companhia de seu cachorro vira-lata, providencialmente apelidado de "Amigo".
Não entendia o porquê do seu gênio, da sua irritação e aparente agitação. Segundo me disse em conversas esparsas, dores de cabeça, epilepsia e um início de Alzheimer. Não era o que a vizinhança me alertava, diziam que ele mexia com isso, ou com aquilo. Bem, se mexia ou não, nunca me fez nada, sempre me tratou bem. O único incômodo eram suas “interfonadas” com pedidos de “dez cruzeiros ou vinte” que eram devidamente descontados ao final do mês. Certa vez contou-me que deu “perda total” no Corsa que tinha em um acidente subindo da praia, depois o Saveiro que comprou com o dinheiro do seguro quebrou. Enquanto isso, decaía fisicamente, deixava a barba e cabelos crescerem, parou de tomar banho e, à medida que decaía, tudo em volta acompanhava numa bizarra harmonia. A casa envelhecia, perdia a cor, as plantas morriam e o estacionamento virou um depósito de materiais recicláveis. Ficou sem luz e, dizem, sem água. Eu era o seu último mensalista. Mudei de apartamento para um com garagem há cerca de seis meses. Há uns dois meses, parado em um farol da avenida, o vi passando e olhando longe com o cachorro Amigo no guidão da bicicleta, companheiro.
EPÍLOGO
Dia 27 de janeiro de 2010, noite.
-Flávio, vem aqui ver uma coisa no computador.
Li a matéria no site do famoso jornal.
-Adivinha quem é o sujeito?
O que pensar disso?
Não tenho por hábito duvidar a priori do que as pessoas me dizem.
Boa sorte Eduardo!
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quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
MAIS ESTRANHO QUE A REALIDADE
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Belíssimo relato, Grão. Parabéns.
ResponderExcluirE boa sorte ao Eduardo.
ps. Eu lembro de tê-lo visto algumas vezes no estacionamento, e vc já tinha me contado, na época, essa história da herança e dos problemas dele com drogas.
Muito bom “post”, bem escrito e criativo!
ResponderExcluirGostaria de convidá-lo a visitar nosso BLOG, minervapop.blogspot.com
Anselmo
Fiquei kreta! Depois da história do casal de moradores de rua que cuidam das pças aqui da quebrada, ver o q tá rolando com este Edú, CRUÉL. As vezes tennho medo de me decepscionar com os terráqueos e me jogar assim. Apesar que pedra arrasta pra isso msm. Droga do fim dos tempos, mas ainda acredito q Ainda Há Tempo!
ResponderExcluircara, muito bom seu texto!!!
ResponderExcluirgrande história Grão!
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