A crise deve fazer parte da vida de 10
entre 10 cartunistas. Principalmente quando essa profissão se depara com
resposabilidades de pai de família (pagamento de contas e criação de filhos).
Tem também aquela eterna interrogação: “por quê, pra quem qual a razão que faço
isso?” Jamais, em hipótese alguma, Lourenço Mutarelli estaria for a desse
grupo.
E isso é muito fácil de perceber em suas
publicações clássicas, como Natimorto,
Eu te amo Lucimar, entre outros. Diomedes - A Trilogia do Acidente nasceu no meio de uma dessas
crises: estava muito tempo sem fazer quadrinhos e sua produção estava
direcionada para o mercado comercial, quando Douglas Quinta Reis, da Devir,
sugeriu que produzisse suas histórias em momentos de folga, ou seja, encarar
seus quadrinhos como hobby. Foi aí que passou noites em claro (depois de
colocar o filho para dormir) produzindo essa trilogia (que, na verdade, saiu em
quatro volumes originalmente pela Devir) que a Quadrinhos
na Cia. acabou de relançar em um álbum único, luxuoso e definitivo.
O personagem foi inspirado em seu pai, um delegado de
polícia, que levava parte do trabalho de perícia para casa, que o filho sempre
dava uma espiada. Diomedes é um delegado aposentado que se aventura agora como
detetive particular, porém, frustrado em nunca ter resolvido um caso sequer,
acaba tendo uma vida meia-boca que faz com que sua mulher (e única paixão –
embora nunca desperdiçasse uma profissional do sexo) o abandonasse. Além da
desgraça profissional, a mulher desistiu do marido por nunca ter um sofá de três lugares.
Na primeira parte da história, o detetive é
contratado para encontrar o mágico Enigmo. E é aí que começa as aventuras do
nosso herói, que se dá mal na maioria das situações e apanha feito um saco de
pancadas. Acaba se envolvendo com um sujeito que quer realizar um sonho e que
roubou uma bolada de seu cunhado e, claro, estava sendo perseguido.
No segundo caso é convocado a descobrir o
serial killer que tem o hábito de envenenar casais que topam um ménage a trois.
O poeta Glauco Mattoso é envolvido na trama, tanto com seus sonetos, como dando
conselhos ao detetive. Dessa vez ele se envolve com um policial pilantra que quer
usá-lo para se promover. Porém, consegue conquistar um grande amigo que
seria seu parceiro até o final da saga: o policial homossexual Waldir.
E na última parte é “promovido” a
detetive intercontinental pelo advogado Dr. Gouveia (que tenho quase certeza
que foi baseado no Gualberto Costa
da Livraria HQ Mix - foto ao lado), que o indica
para uma ricaça que não tem notícias de seu marido que foi para Lisboa e
desapareceu. Lógico que ele se mete em um monte de roubadas, se envolvendo com
uma seita que guarda um grandioso segredo, que Diomedes acaba decifrando com a
ajuda de Zigmundo Muzzarella, que é, na verdade, o próprio Lourenço.
A aventura tem um ritmo muito bom, que
segura o leitor de uma forma que dá aquela vontade louca de saber o desfecho
dos casos e até, de alguma forma, ajudar a decifrar os mistérios. As mais de
430 páginas passam muito rápido.
O trabalho de Mutarelli é peculiar, pois é cheio de
códigos, sutilezas e referências muito bem sacadas. Como colocar
referências a lojas que já não existem, como Mappim, Casas Buri e fazer
paródias com nomes de empresas que ainda existem como Editora Porvir (Devir).
Nas falas do ex-adestrador de leões Lorenzo, a situação é tão tensa, que os
balões com as falas saem de dentro da cabeça do personagem, dando uma
dramaticidade muito perturbadora para a cena.
Também faz algumas homenagens, como na
perseguição no primeiro capítulo quando os detetives Dupont e Dupont, junto com
Tin Tin, aparecem na cena. Também nas pixações (Angeli, Adão Iturrusgarai) e
quando o detetive vai a uma feira de histórias em quadrinhos na cidade de
Amadora, onde ele esbanja as homenagens a inúmeros cartunistas que são
listados no final do livro.
As piadinhas sarcásticas (também influência do pai
de Mutarelli) são um destaque à parte, pois são de uma sutileza corrosiva que é
capaz de arrancar gargalhadas, junto com as explicações que dá a Waldir quando
tem que contar alguma história ao parceiro pouco paciente.
O bônus da publicação é a parte frustrante, principalmente pelo fato de ter uma chamada na capa com “Arquivo de
esboços e tiras” que se resumem nada mais a 12 páginas de tiras e alguns esboços. Faltou
mais. Muito mais, considerando a importância da publicação.
É um livro que tirar o fôlego e que mostra
um Mutarelli completo, mostrando vários lados desse que é um dos mais
importantes cartunistas brasileiro de todos os tempos.