quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O ESPELHO DE CLARA NASHVILLE



por Edu Zambetti

Campainha, susto, porta aberta, foco no chão, pacote vermelho com ares natalinos...
Esta seqüência desorientou de vez a estranha e ilusória vida de Clara Nashville. Sim, a maior, mais bela, mais talentosa, fútil e mais idolatrada das atrizes contemporâneas. Quando conversava consigo própria ela se apelidava de Nash, mas era seu apelido secreto. Pessoa alguma sabia dele, nem os mais íntimos...nem os verdadeiros amigos.
Quando viu a caixa minuciosamente embrulhada refletindo a luz natural daquele dia de verão largada em sua porta, deixou escapar um sussurro típico de quem costuma conversar com o espelho:

- Nash, alguém lembrou de você neste natal!

Ainda com o peito pulsando numa batida além do normal, tratou de abrir aquele embrulho sem a menor preocupação em preservar o papel. A caixa não era pequena e a tampa não estava bem colocada...Bastou um toque de sua mão e a caixa se abriu, sem esforço e sem revelar algo de bom... Foi difícil de acreditar, quase impossível de absorver a informação, precisou puxar o dedo indicador com muita força para crer que estava acordada.
Se com o toque da campainha sua pulsação gerou aquele desagradável aperto no peito, agora este incômodo havia tomado proporções insuportáveis...
O conteúdo do belo embrulho não era uma bugiganga natalina qualquer, nem algum cacareco comprado no mundo eletrônico virtual, muito menos um mimo enviado por um querido fã ou parente distante.
Clara Nashville estava lá, estática, olhando para sua própria cabeça embalsamada, cortada com requintes de crueldade, muito mal colocada no interior da caixa!!! Pensou ser uma brincadeira de mau gosto, mas não era. Não poderia ser.

- Nash, como alguém recebe a própria cabeça dentro de uma caixa no Natal?

Falou exatamente desta forma, para si própria, com pouca força e com mínimos movimentos nos lábios, caminhando em direção da geladeira para beber uns goles de vodka gelada.
Foi recapitulando sua rotina nos dois últimos dias e percebeu que todos os vizinhos não a cumprimentavam mais...Percebeu que nenhum fã a reconhecia na loja de conveniência nem no shopping...Lembrou que, ao fazer compras, errou o código do cartão de débito...Nada disto fazia sentido...
Não. Com certeza não estava morta, podia sentir o batimento do coração aumentando insistentemente. Só a vodka poderia ser a salvação.

- Cabeça...Caixa...Eu...Eu?

Abriu a geladeira e a incógnita (se houvesse uma escala seria a mais absurda delas) começou a competir com a razão. Dentro dos potes de picles estavam seus lindos olhos verdes, os mesmos que faziam a multidão sofrer de paixão nos cinemas. Dentro do congelador brilhava uma das mãos ainda exibindo o anel de esmeraldas...A outra estava retalhada e distribuída pelos pratos congelados para o natal e num cúmulo desnecessário, alguns dedos caíram no chão sem que ela desse conta. Mas para ela, o pior de tudo foi a garrafa de vodka...

- Completamente vazia? Faz dias que não bebo!Como vazia?Natal sem vodka gelada é impossível de ser bom. Vou vestir a mesma roupa que apareço naquele comercial de desodorante e, se der sorte, chego na loja para as compras antes que seja tarde. Compro qualquer uma bebeida que estiver na prateleira, dou uns autógrafos e tal...Preciso de uns goles...Cabeça...na caixa.Como pode? Será que o pessoal do teatro vem para a ceia?

Já nas ruas, certa de ser reconhecida, frustrou-se ao perceber que um Papai Noel tosco, na porta da loja de importados chineses, fazia mais sucesso do que ela. Inconformada, Clara esbarrou violentamente no velho de barbas brancas e entrou na casa de inutilidades...Todos olharam para a roupa dela com espanto. Para a roupa, mas não para ela...Começaram a rir, como se houvesse uma caricatura ali, todos perceberam que alguém estava desequilibrada.
Este alguém sussurou como sempre...

- Nash, o que eles pensam que são...Sou Clara Nashville! E eles, quem são?

Neste momento olhou para uns espelhos mal emoldurados com a etiqueta azul revelando o preço de R$6,66 a embalagem com duas unidades. No reflexo, um presente torturante invadiu mais uma vez sua mente.

-Espera lá! Aquele no espelho não é meu rosto! Não são meus olhos, não é minha boca...Esta roupa não é minha, estes movimentos não são meus...Meu Deus!!! Não sou eu no espelho!!! Não sou Clara Nashville, sou...sou... Sou a empregada dela!!!

Clara Nashville havia faltado três dias seguidos no ensaio da peça que estrearia no próximo ano. Barbaramente assassinada pela sua empregada e confidente, teve sua cabeça enviada por intermédio de um mensageiro para sua própria casa no dia de Natal. Georgina, a empregada assassina, apodrece hoje no cadeião da cidade. Sua maior diversão é, nos dias de natal, olhar através das grades e ver o helicóptero do Papai Noel descendo na maior favela da região enquanto os miseráveis apontam para o ar.

- Nash, será que alguém vai lembrar de você neste natal?

4 comentários:

  1. Lembrei de Seven, com o Brad Pitt e tal...

    abs!

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  2. Surrealista!
    Já eu lembrei "um cão andaluz"...
    classe!

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  3. poxa, eu fiz meu post antes de ler seu comentário Grão!
    Mais uma "coincidência... ou não!"
    Eu não lembrei de filme não, mas fiquei sem fôlego aqui!!!
    Animal Zambetti!!!

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