Nosso camarada Fábio A. fez uma matéria especial sobre o músico Merzbow, e liberou para publicação aqui no Zinismo. Confira!A beleza do ruído
Masami Akita aka MerzbowTexto: Fábio A.
Início dos anos 80, o jovem Masami Akita, insatisfeito com a sua passagem pelo rock e pela pintura, decide exprimir-se de um novo modo. Brutal e inconformista, junta a agressividade do rock, a espontaneidade do freejazz, a radicalidade do dadaísmo e o extremismo do que se chamou "música industrial", para criar o projeto Merzbow.
O nome deste cadáver esquisito foi adaptado de uma colagem tridimensional do dadaísta alemão Kurt Schwitters, “Merzbau”, constituída por peças inutilizadas de velharias encontradas na rua.
No conceito desta "The Cathedral of Erotic Misery" – nome alternativo da obra – Masami Akita encontrou a idéia para as primeiras realizações do seu projeto musical.
Também elas eram colagens anárquicas de ruídos recolhidos de diversas fontes (televisão, rádio, discos, guitarras desafinadas, vozes) manipulados e amplificados de modo a produzir uma cacofonia densa e violenta, sem a mínima concessão às convenções sobre ritmo e melodia. Elas eram criadas no formato cut/ paste, loops e adjacências em fitas de rolo e k7. Feedback anárquico e esporro sonoro.
Estas peças haviam de se tornar cada vez mais extensas e intensas, superando os seus próprios limites em cada obra seguinte, originando aquilo que contraditoriamente se pode chamar música "noise".
Aqui vale lembrar e informar ao leitor que a música noise que o Merzbow produz/ compõe não tem nada a ver com o noise de bandas como Sonic Youth e outras. Masami Akita produz espasmos, sexo, surdez.A presença do ruído na música contemporânea não era, já então, inédita e pelo menos desde os futuristas italianos que encontramos o ruído, não só como fenômeno acidental, mas tomado mesmo por vezes como o objeto essencial da expressão musical moderna.
Em 1913, Luigi Russolo escrevia o seu manifesto "A Arte dos Ruídos" e proclamava o uso de todos os ruídos, desde os motores de explosão aos gritos humanos, como expressão material de uma música moderna e futurista, que se opunha aos entediantes concertos dos salões burgueses.
Na verdade, este compositor italiano não se limitou a usar os sons urbanos do quotidiano como os recriou, inventando os seus próprios intonarumori (máquinas de fazer ruído), para os quais escreveu composições numa nova forma de notação musical.
Não obstante, não podemos inscrever o "brutalismo” de Russolo na genealogia de Merzbow. Se Russolo reivindicava o uso dos ruídos, na sua música futurista, fazia-o em nome da renovação tímbrica da música moderna. De fato, podemos reconhecer herdeiros diretos desse enriquecimento da música com sons concretos do quotidiano e da síntese eletrônica de sons em Edgar Varèse ("Poéme Eléctronique"), Pierre Schaffer e Pierre Henry, ou mesmo em expressões populares, do rock ao techno.
Já em Merzbow, e no noise japonês em geral, o ruído não é apenas um novo instrumento; ele torna-se a forma e a matéria da obra musical em tudo o que isso pode ter de contraditório.
O ruído é normalmente definido como o som desagradável e não desejado, opondo-se ao som musical. Esta é talvez a definição mais simples e mais aceita, mas acaba se tornando um critério subjetivo: o que é ruído para uns pode tratar-se de música para outros. Nesta mesma linha relativista e subjetivista, Masami Akita problematiza:
"Não faço idéia do que chamam música ou ruído (...) se o ruído significa som desconfortável, então a música pop é ruído para mim".
Porém, e ao contrário do que mostra a boa fé destas palavras, a música noise joga precisamente com a oposição som musical/ ruído, nomeadamente, com o fato de o ruído ser função do que não é ruído, que por sua vez é função de não ser ruído. Isto é, o ruído é ruído, na medida em que não é música, e a música só o é, porque não é ruído.
Mas isto não significa que o ruído seja uma forma mais primitiva e originária de som. O som bruto não é nem música, nem ruído. Essas são apenas categorias que são aplicadas aos resultados da percepção auditiva em função de critérios psicológicos e culturais. Escolher o ruído como categoria estética essencial de uma expressão musical é partir de uma contradição interna, pois: apresentar como música o que é suposto não ser música é como matar-se no berço o próprio projeto de música noise, na medida em que, a partir do momento em que é apresentada a um público disponível ela parece perder instantaneamente a sua função de ruído, tornando-se apenas projeto artístico.
Semelhante situação viveu o projeto de "anti-arte" Dada, onde os limites entre a expressão artística e a vida foram postos à prova, quando objetos do quotidiano (o famoso urinol de Duchamp) foram retirados do seu contexto e expostos como obras de arte. O projeto "anti" fracassara a partir do momento em que as peças passaram a integrar as coleções permanentes dos museus e o que era subversivo tornara-se num inofensivo momento da história da arte.
Porém o fracasso foi meramente aparente e só poderia assim ser interpretado à luz de considerações meramente formais. Com efeito, a subversão Dada foi bem real e concreta, servindo para requestionar os limites da linguagem artística e do papel da arte na sociedade.
Também o noise de Merzbow é concreto e a tensão dialética entre a música e o ruído não pode ser resolvida pela opção formal de o apresentar ou não como obra musical. Pelo contrário, a sedução do som de Merzbow, em toda a sua densidade, saturação, irrepetibilidade, irracionalidade, brutalidade, reside na iminente reversibilidade da sua tensão dialética: ruído insuportável/ êxtase auditivo.
Por esta razão, a experiência de Merzbow aproxima-se do patético erótico: o desejo de fusão mística e a impossibilidade da união determinada pela descontinuidade trágica da diferença. É o próprio Masami Akita quem reivindica o pan- erotismo da sua expressão musical: "Tudo é erótico, todo o lugar é erótico", citando o aforismo surrealista que mais o influenciou; e continua: "o ruído é a mais erótica forma de som, por isso todos os meus trabalhos se referem ao erótico".
E, de fato, o ouvinte de Merzbow é brutalmente violado e, simultaneamente convocado à escuta ativa e desejante: assaltado pela densa massa de frequências, a repulsão logo se transforma em atração e sente-se emergir nessa densidade sonora, sem, porém, nunca encontrar o conforto de uma harmonia ou a regularidade de um ritmo, antes mantendo-se numa frenética e inalcançável demanda.
A metáfora do masoquista não é aqui deslocada, podendo mesmo considerar-se o paradigma do ouvinte ocidental de noise japonês. Mas a perspectiva oriental de Merzbow não é a do controle da audiência ou mesmo do material sonoro (essa seria porventura a intenção de alguns grupos ocidentais oriundos da música industrial, como Whitehouse, referida porém, como influência de Merzbow); bem no oposto disso, desde os seus primeiros trabalhos, Masami Akita procurou minorar a sua intervenção, reinventando o processo de criação automática através da aleatoriedade da produção do som pelo equipamento que utilizava, nomeadamente, explorando as virtualidades do feedback, em vez da notação musical.
Os sons de feedback do equipamento são um conceito central para Merzbow. O feedback produz automaticamente uma tempestade de ruído e isso é bastante erótico, como se se tratasse de uma expiação magnética da eletrônica.
A produção de Merzbow é ainda muito ativa e tem vindo a ganhar um grande reconhecimento internacional. O número de peças eleva-se acima dos 500. Recomendam-se álbuns como "Noisembryo", "Music for Bondage Performance", "1930" ou "Material Aktion II", para a descoberta de uma das formas mais extremas e menos convencionais de expressão sonora.
Em 2000, o selo Extreme Records lançou o MERZBOX. Uma caixa contendo 50 cds. 20 deles nunca gravados. Na caixa vinha adesivos, pôster, postcards, livro, cd-rom e camiseta. As primeiras cópias ainda vinham com um pôster extra e um álbum duplo. Foda, né?
Recentemente seus álbuns incluem uma visão mais polítizada e ativista, defendendo os direitos dos animais tais como: Minazo Volume 1 e Volume 2, Blood Sea, Animal Magnetism e outros. Hoje Mr. Masami Akita toca com 2 laptops, tendo abandonado por um tempo seu lado analógico e dedicando seu tempo a produzir barulho com o uso de softwares. Mas não pense que isto “amaciou” sua sonoridade. Muito pelo contrário. Através desta mudança “radical” podemos notar novas freqüências ensurdecedoras em suas músicas, chegando a provocar náuseas, dor de estômago e cabeça e ás vezes uma leve tremulação nos globos oculares.
E ainda vem gente me dizer que noise é Sonic Youth?
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