segunda-feira, 5 de janeiro de 2009
O GUITARRERO
Toda cidade pequena que se preze já teve um Guitarrero em sua praça. Balneário Fantasma não era diferente.
Naquele domingo de manhã Rodolfo passava pela praça voltando da feira do centro, quando viu aquela tradicional multidão que sempre se formava em torno de alguma atração na praça da matriz.
Como estava sem pressa para cozinhar o frango depenado que carregava consigo, parou para ver do que se tratava.
Lá estava. Um Guitarrero debulhando uma guitarra plugada em um pequeno amplificador.
Rodolfo sabia que ouvir um Guitarrero era uma questão de sorte. Geralmente não eram nada virtuosos, mas cantavam com fé digna de comoção. Se você tivesse a sorte de pegar um que tivesse um repertório cantarolável valia a pena vê-lo.
Rodolfo procurou uma brecha no meio das cabeças dos curiosos e começou a observar o pequeno show.
Era um homem de seus quarenta e cinco anos portando um belo “mullet” e bigode castanhos. Possuía um sorriso de cigano e rugas charmosas e sinceras em tornos dos olhos. Vestia jeans, camiseta florida e colete.
Rodolfo não gostava de hippies, mas resolveu dar crédito e audiência ao Guitarrero, pois o público parecia atento.
A música que o Guitarrero cantava era desconhecida, porém familiar.
A melodia tinha algo de conhecido, mas Rodolfo não especificar exatamente o quê. Começou a entender o porquê de tantas pessoas prestarem atenção ao hippie. Ele tinha carisma: cantava, sorria, babava com fúria na gaita - um show sincero. Valia a pena até despejar umas moedas naquele chapéu que estava no chão.
Rodolfo percebeu que a multidão se empolgava com o som ao ponto de perder a vergonha e acompanhar cantando em altas vozes as canções do Guitarrero. Para sua maior surpresa ele também se pegou cantarolando com o povo.
Dedilhados comparáveis ao dos Eagles, solos do Dire Straits, um vocal à la Creedence Revival. E as letras? Que letras eram aquelas? Músicas inéditas, sem dúvida. Mas como assim? Porque Rodolfo se percebeu cantando se nunca ouvira tais músicas? Porque lhes eram familiares?
E cantava. Cantava e parecia não dominar sua boca que abria e fechava num ritmo gostoso. Embora as letras parecessem claras, Rodolfo não sabia seus significados. “Foda-se” pensou, o que poderia haver de errado se sentia tão bem?
Começou a olhar um casal ao lado e estranhou algo, eles pareciam felizes também, mas cantavam outra música, que ao mesmo tempo era executada pelo Guitarrero, mais sensual e de vocal sussurrado. Reconheceu certa semelhança com o estilo de Marvin Gaye.
Voltou à sua canção e cantarolava, muito feliz.
Uma adolescente ao lado também lhe chamou atenção, ela berrava histericamente outra letra, outra música, um tanto boba, que também era executada pelo Guitarrero.
Rodolfo retornou o olhar para o casal vizinho e percebeu que eles se beijavam de modo lascivo e constrangedor. A música que eles cantavam era sensual demais para se restringir ao verbo.
De repente, as várias músicas se tornaram uma só, num refrão crescente e linear que se metamorfoseou enfim em um mantra.
E a roda abriu-se. Com seu sorriso largo o Guitarrero saiu tocando, conduzindo a multidão que recitava o mantra na qual a música se tornara.
Todos estavam muito felizes, satisfeitos e realizados. Não havia outra coisa a se fazer a não ser seguir o Guitarrero com seus acordes maravilhosos e porque não dizê-lo: celestiais!
Eis que o Guitarrero subiu na traseira de sua caminhonete velha e começou a bater palmas e formou-se um coro à capela.
Foi então natural: todos começaram a jogar seus valores no Guitarrero que batia palmas com seu sorriso cada vez mais largo, Rodolfo percebeu que seus dentes eram amarelos, mas que pensamento besta... Tirou sua carteira, seu relógio e até sua aliança e jogou na caçamba do Guitarrero, também era a única coisa certa a se fazer. E assim todos fizeram cantando e batendo palmas.
De repente a caminhonete começou a se mover e foi sumindo na poeira da rua principal de Balneário Fantasma. Todos deram adeus para o Guitarrero que sumia no horizonte, acenando de volta na caçamba do veículo– muitos tinham lágrimas nos olhos.
Alguns ficaram mais tempo – Rodolfo foi embora depois de vinte minutos. Pegou sua sacolinha de frango que jazia tristemente no chão empoeirado e começou seus passos para casa.
Foi andando mudo tentando digerir o que fora aquilo. À medida que se afastava do lugar onde estava a caminhonete e se aproximava de sua casa se sentia mais triste e crescia o abismo em si mesmo.
Como explicaria para Dinah a ausência de sua aliança.
-Maldito hippie!
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Aposto que o Guitarrero batia palma pro nascer do sol!
ResponderExcluirconclusão matadora: maldito hippie!
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