segunda-feira, 30 de maio de 2011
ENTREVISTA GAZY ANDRAUS - PARTE I
É sempre bom levar um discurso além do lugar comum. Em muitas das conversas interessantes a respeito de fanzines que tenho ouvido ultimamente, ecoa o nome do professor Gazy Andraus. Doutor em Ciências da Comunicação, na área de Interfaces da Comunicação, pela ECA-USP, (premiado com a melhor tese de 2006 pelo HQ-MIX-2007), mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp, pesquisador do Observatório de HQ da USP; da Interculturalidade e Poéticas da Fronteira - UFU e do INTERESPE – Interdisciplinaridade e Espiritualidade; editor e autor independente de histórias em quadrinhos adultas de temática fantástico-filosófica e Professor e Coordenador do Curso de Pós em Docência no Ensino Superior da FIG-Unimesp
O Zinismo foi atrás e compartilha com seus leitores uma rica conversa (dividida em duas partes) com o mestre, que vai do zen budismo à neurociência sem fugir do tema: fanzines e HQs...
ZINISMO: Gazy como se deu seu envolvimento com a ilustração e os fanzines?
GAZY: Desde pequeno, como toda criança, gostava de ver desenhos. Daí para arriscar a fazê-los, é algo natural. Depois foi num crescendo e se ampliou dos 8 aos 15 anos, principalmente porque eu gostava muito de ver os quadrinhos de super-heróis na adolescência e absorvendo os estilos de vários desenhistas, tentava a meu modo recriar (sem copiar, mas de memória, imitando estilos de desenhistas que mais me apraziam).
Aliás, o fato de ter trabalhado no restaurante comercial de meu pai me obrigou a desenhar muito para equilibrar minha insatisfação em ficar no estabelecimento a maior parte do tempo De toda maneira, contribuiu para eu continuar desenhando – e independente disso, eu sorvia os desenhos nos gibis pelo prazer que os traços me instigavam, como a música nos faz ao ouvi-la. E assim, as artes fantásticas também de ficção científica e ilustradores como Kaluta, Rodney Matthews e Roger Dean ou Frank Frazetta ativariam cada vez mais meu gosto pelas ilustrações fantásticas e capacidades do ser humano em retratar o imaginário!
Rodney Matthews
Os fanzines só vim a conhecer depois, perto de meus 19 para 20 anos, possibilitando-me saber que eu poderia publicar minhas HQ e imagens em revistas, ainda que independentes Foi uma janela que se descortinou na qual nunca havia pensado antes!
Fale um pouco sobre os quadrinhos fantásticos-filosóficos. É verdade que é um gênero genuinamente brasileiro? Quem são seus principais autores?É. Mas baseado em peculiaridades e influenciado pelos quadrinhos principalmente franceses da trupe da Metal Hurlant: Moebius, Caza e Druillet!
No Brasil temos principalmente Calazans, que me apresentou ao universo dos fanzines, Henry Jaepelt, Edgar Franco, Antonio Amaral e eu, além de Joacy Jamys que incursionou um pouco por esse estilo (mas já passaram também Al Greco e Rosemário).
Como Moebius que fazia HQ nonsenses e Caza com suas HQ metafóricas, a gente ia construindo nossas HQ, porém, mais curtas do que eles, por causa da maior facilidade de assim publicá-las dessa maneira em zines. Ou seja, a crise de não ter como publicar HQ no Brasil e nem de ficar desenvolvendo narrativas homéricas nos possibilitou algo extraordinário: HQ curtas e “grossas”, lacunosas como as poesias Hai-kais ou os Koans zen-budistas! Esse termo “fantástico-filosófico” adveio de Henrique Torreiro, organizador das Xornadas de Fanzines anuais em Ourense na Espanha, quando recebeu e leu o fanzine “Irmãos Siameses” criado por mim e por Edgar Franco.
Fanzine Irmãos Siameses
As histórias em quadrinhos por muito tempo foram consideradas uma barreira na aprendizagem da leitura. Gostaria que você explicasse como esta visão tem mudado com avanço da neurociência.
Realmente, na minha infância e adolescência, não se misturavam estudos escolares com a leitura de HQ. Para o sistema cartesiano, os quadrinhos com seus desenhos atrapalhariam o potencial das palavras (fonemas) e suas possibilidades de passar mensagens conteudísticas!
Porém, com a evolução das tecnologias, possibilita-se agora visualizar áreas do cérebro que são ativadas por diferentes modalidades, como por exemplo, leitura e meditação. É por isso também que conseguiram saber que as imagens (e ideogramas chineses) ativam certas regiões e áreas do hemisfério cerebral direito – que responde pela criatividade e intuição e a não linearidade, enquanto que os fonemas e a fala pelo hemisfério esquerdo - que responde pela razão Eis a razão de as HQ terem ficado de fora: o hemisfério esquerdo, racional e com o “dom” da palavra, sobrepujou o direito (tido como obscuro), desvalorizando o potencial de informação imagético dos desenhos, mas que na verdade era essencial, pois é o hemisfério direito que cria, já que o esquerdo só trabalha com base na memória, no passado. E o hemisfério direito, já que “lê” as imagens (sem identificá-las, trabalho que fica para o esquerdo), funcionando junto ao outro lado, exponencializa a inteligência mental, tornando-a sistêmica, isto é, não cindida, não cartesiana apenas. Isso faz com que o cérebro neuroplástico humano se amplie, aumentando as considerações e reflexões (e o processo criativo). “Beber” imagens nos torna mais ricos, como absorver músicas. Ao contrário, se pouco estimulados nisso, viramos “robôs” com informações cartesianas somente, sem desenvolver direito a emoção, a criatividade e até a fraternidade!
Queremos adultos profissionais cindidos, que só veem o lucro e o trabalho racional? Ou preferimos que também sejam humanistas, amistosos e criativos?
Pois as imagens desenhadas nos quadrinhos, bem como os próprios fanzines criativos em suas miríades de formas e temas (bem como as cenas do cinemas, as músicas etc) nos levam para isso também, para o lado fraterno e universal estético/ético da mente e da vida!
Assista o trecho do filme “Pink Floyd – The Wall” em que o professor pune o aluno por escrever um poema e não repetir com ele a ladainha do valor de um hectare, e veja que o sistema racional cartesiano cindido (reducionista) não tem sido um problema só da educação brasileira, mas mundial!
E como aconteceu o encontro das Histórias em Quadrinhos com o meio acadêmico?
Para elucidar isso, resolvi dividir meu percurso em dois. Na parte 1, antes da(s) faculdade(s), e na parte 2, no ingresso dela(s).
Parte 1:Meu percurso não me fazia me imaginar como um pesquisador dessa área. Quando garoto aventava a hipótese de ser paleontólogo de tanto que eu gostava de dinossauros. Mas no íntimo eu sabia que era mais uma brincadeira minha. Por tanto desenhar, escolhi a carreira de artes. Na primeira tentativa ao prestar vestibular para a USP, isso lá por 1986, não alcancei a vaga devido a minhas baixas notas na segunda fase com relação à matemática (embora eu tenha tirado uma nota altíssima em redação). Classifiquei-me em 28º. de 20 vagas. Meio ano antes eu havia passado em arquitetura na Universidade Católica de Santos, mas estava no meio de um cursinho, aprendendo num ano mais do que o equivalente aos 3 que fiz no colegial do Estado! Embora, é claro – e friso isso – jamais estudei direito nas escolas ou em casa, tendo sido quase sempre ajudado em matérias como química ao fim de ano por um saudoso amigo (falecido entre 2009 e 2010 provavelmente por um AVC, o inteligente colega Baturité Natal de Oliveira – e vai essa parte da entrevista como homenagem a ele). Essas ajudas vinham para recuperar uma ou outra nota de química ou matemática que no fim de ano precisava para não ficar de recuperação. E nunca fiquei: me esmerava ao final com extrema dificuldade por não ter quase nunca prestado atenção nas aulas durante o ano pelo simples motivo que meu foco era sair da escola diariamente: eu cronometrava o tempo de acabar as aulas como um presidiário media seu tempo em cela, porque é assim que eu me sentia lá! A escola tinha (e ainda deve ter) um sistema cartesiano que poda as manifestações criativas de muitos alunos que têm outras maneiras de pensar devido às inteligências múltiplas que não eram levadas em consideração. E aliás, deixei de prestar atenção nas aulas de matemática a partir da 5ª. série porque uma professora me deixou desconfortável ao me dar bronca e dizer que eu estava desperdiçando gizes na escola por ter desenhado dinossauros na lousa. Ela me mandou apagar o desenho bradando dessa forma! Para uma criança de 11 anos, não há trauma nem nada assim muito grave: mas me irritou porque eu não fiz nada de errado, e sim, desenhei no quadro negro. A visão para o ensino era a de que desenhar equivalia a gastar gizes! Para você ver como o desenho (e as histórias em quadrinhos) eram desprezadas. A partir daí ficou uma lacuna no meu aprendizado de matemática, pois aliado à fraca didática da professora eu não me concentrava de maneira alguma nas aulas, pensando apenas em sair daquele claustro!
Isso tudo me enriqueceu, porque enquanto eu também passava pelas faculdades, eu ia verificando a péssima didática da metade do professorado, o que corroborou para eu me direcionar contrariamente ao que via de erros dos outros mestres, não fazendo igual e tentando ser o mais didático e compreensivo possível ao lecionar!
Parte 2: Pois bem, eu ingressei finalmente no curso de Desenho Industrial na Faculdade de Belas Artes em 1986, mas logo em seguida desfiz a matrícula já que fui aprovado no concurso da Universidade Federal de Goiás no mesmo ano em artes Visuais. Como era gratuito, valia a pena, principalmente porque eu tinha parentes em Goiânia, onde morei por um ano e meio na casa de meus tios (Rafeh, irmão de meu pai e a esposa dele Catarina, eram, na verdade, também meus padrinhos, e aqui dedico a eles também parte dessa entrevista). O curso era fraco, mas os muitos amigos que fiz, principalmente o Jorge Del Bianco, André Rodrigues e Célia Gondo (mais uma homenagem, nesse caso, a eles, que aqui presto), os quais ainda mantenho contato, foram imprescindíveis para o aprimoramento de meu (nosso) processamento criativo, ainda mais que comungávamos de vários gostos na área dos quadrinhos e arte fantástica. Porém, as sucessivas greves naquele período, já que os professores ganhavam mal, me fizeram voltar a São Paulo, onde prestei finalmente a FAAP em meados de 1987, que tinha um curso relativamente barato (distintamente do que é hoje), e o curso de artes era muito forte (na verdade, cursei Licenciatura Plena em Educação Artística). Fiquei 5 anos morando durante a semana em São Paulo, enquanto que quase todo fim de semana guardava um dinheiro para voltar a São Vicente, junto de minhas coisas e minha família (minha mãe Victória faleceu em 1992, logo após eu concluir o curso, e aqui parte da entrevista em memória a ela também). Nesse período da FAAP, para cujo curso consegui uma bolsa que variou de 50 a 70% (agradeço a mantenedoria da FAAP por isso também), acabei conseguindo residir numa igreja árabe de São Paulo, pois os pastores Ragi Khouri e Rosa (ambos in memorian) eram amigos da família e me cederam um quarto. Além disso, outro tio irmão de meu pai, Elias Andraus (também falecido a quem rendo outra homenagem), foi importante pilar para minha estruturação, pois me auxiliou financeiramente para dar conta de meus gastos naquele conturbado período, já que meu pai perdeu quase todo o dinheiro alguns anos depois da venda do restaurante devido à inflação galopante! Ao mesmo tempo, consertei meus dentes com um primo dentista (o grande Fred, ao qual até hoje me consulto, e a quem dedico igualmente parte dessa entrevista), quando estava numa fase muito delicada da vida e com problemas dentários herdados devido ao excesso de refrigerantes na infância! Como se vê, tive os maiores auxílios possíveis para “agüentar” a parada de não ter dinheiro e de fazer um curso improvável para uma família tradicional libanesa que sempre quer os filhos médicos ou engenheiros! Mas o que desenvolvi nesse curso da FAAP foi excelente: a carga era de professores artistas e pelo menos a metade deles aceitava a questão dos quadrinhos. Acabei aglutinando esses saberes das artes que lá desenvolvi com as HQ, enquanto estudava por conta própria em paralelo, conceitos profundos relativos à espiritualidade e autoconhecimento em geral, principalmente com livros do filósofo e educador Huberto Rohden!
Desenhos baseados na leitura de Huberto Brohden.
Foi com toda essa bagagem de artes/educação/ética que trabalhei interdisciplinarmente arte e quadrinhos na faculdade e depois ingressei num mestrado em Artes Visuais. Até então eu estava um pouco perdido, tendo dado aula durante 1 ano e meio em escolas públicas após meu término a licenciatura, e visto que ali era péssimo para se trabalhar! Depois, ingressando no mestrado, um novo rumo surgiu (tendo morado e trabalhado um pouco para meu primo Jorge Andraus, em São Paulo, a quem dedico igualmente mais uma fração dessa entrevista).
Fale um pouco sobre suas pesquisas e teses em pós graduação na área de quadrinhos e zines:
Dissertação de Mestrado
No meu mestrado, orientado pelo Flávio Calazans, quem foi a pessoa que me abriu o caminho para o universo dos fanzines (dedico também parte dessa entrevista à amizade daquele período), eu aprendi a escrever artigos, a participar de congressos e a ter uma visão universitária mais madura de tudo. No início eu estava com o Edgar Franco, que entrou comigo na UNESP como aluno especial (na verdade foi ele que me impulsionou a prestar o mestrado junto, e a outra parte dessa entrevista é dedicada também à nossa irmanada amizade!), mas depois ele entrou na Unicamp na área da multimídia, o que foi ótimo pra ele! Enfim, o mestrado me propiciou escrever vários artigos e desenvolver uma dissertação diferente, já que uni aos quadrinhos poéticos um imbricamento com a física quântica e os koans zen-budistas, ao mesmo tempo que critiquei o reducionismo autista do cartesianismo exagerado acadêmico! Passo seguinte foi uma natural continuidade no doutorado, orientado pelo competente Waldomiro Vergueiro (mais outra parte da entrevista dedicada a ele), em que amplifiquei minhas pesquisas, levando-me a descortinar finalmente porque há o preconceito com as histórias em quadrinhos! Levei 3 anos pra descobrir, e mais um para finalizar (com obstáculos e tudo, como a quebra da perna de meu pai faltando-me 40 dias para acabar a tese que já estava com uma prorrogação: mas dedico a meu pai Said a outra parte dessa reveladora entrevista, pois foi com ele que aprendi a amar verdadeiramente um homem que tinha compaixão pelo ser humano e era belo no coração – lembro-me até hoje que ele se entristeceu, por exemplo, quando o Zacarias, um dos integrantes dos Trapalhões faleceu. Percebi que esse sentimento dele só permeia as pessoas que são empatas e sentem a beleza e o esforço e a perda que faz a falta do próximo com suas qualidades!).
Assim, construí a tese que mostrava que graças ao exagero em usar a mente racional, o ser humano tornou-se crítico e preconceituoso com o que não era racional, como as artes, como os desenhos, já que esses eram lidos pelo hemisfério direito cerebral, cujo desenvolvimento ficava dirimido devido à alta atividade do esquerdo, racional, linear, cartesiano e sem “sentimentos”. Essa foi a chave que me fez ver porque o ser humano criticava o desenho e não me deixava ler gibis em aulas na escola: ao contrário, punia-nos caso fizéssemos isso.
Tese.
Ora, minha formação inteira se deu mais pela marginalidade escolar (no bom sentido), lendo gibis, vendo artes fantásticas, ouvindo músicas que não eram passadas em aulas, estudando dinossauros e espiritualidade misturada com física quântica, e abrangi tudo isso! A escola nem chegou perto de me passar esses informes, salvo raras exceções. Ela teimava em tentar me fazer entender esquemas, por exemplo, de ligações paralelas na elétrica, sem me mostrar relações disso com a vida, ou experimentar tais conceitos na prática! Isso muito me incomodava, e eu ficava sem entender. Já nas aulas das faculdades, mestrado e doutorado os níveis de multidiversidade eram muito mais ampliados proporcionalmente (especialmente nas interdisciplinaridades que o doutorado me permitiu, como as aulas sobre mente, máquina e comunicação).
A escola é manca, totalmente, enquanto que a universidade foi sendo melhorada (apesar de ainda ser consideravelmente elitista e cartesiana)!
Assim, todas minhas pesquisas e envolvimento artístico na atualidade derivam desse percurso que você acabou de ler! Foi intenso, reflexivo e muito duro na juventude! Mas tem sido cada vez mais amplo e rico na maturidade, que é onde me encontro: nosso ensino não sabe disso, nossa educação familiar também está longe de perceber, mas a conclusão a que chego revisando isso tudo nesses escritos é que nenhum de nós pode ser privado de reflexão e auto-reflexão, e nossas sociedades com os trabalhos escravagistas impossibilitam isso, junto de um ensino deturpado e uma desestruturação familiar social resultantes dessa inabilidade de considerações e ponderações. Eu diria que as artes (quadrinhos e zines inclusos) nos possibilitam parte importante dessa formação que o reino pop imediatista e racional não fornece!
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Fantastico!!
ResponderExcluirO dialogo sobre os emisferios do cerebro ativados pela leitura de quadrinhos foi pedagógica pro meu cerebro