Por Flávio Grão
Danilo sempre quis ter sua própria máquina de Xerox, mas nunca imaginou que isso custaria-lhe a própria bunda.
Ao contrário das outras crianças que queriam Autoramas ou bicicletas e gostavam do lago da cidade onde moravam, a nada notória Balneário Fantasma, Danilo preferia desenhar e adorou quando descobriu a possibilidade de duplicar seus próprios desenhos.
A paixão começou ainda no ginásio. Pedia dinheiro para sua mãe para xerocar mapas de Geografia e textos de história e levava secretamente (no meio dos trabalhos) desenhos toscos do Batman, caricaturas dos professores ou desenhos sanguinolentos que adorava fazer para impressionar seus colegas de classe.
Quando adolescente (como todos que não gostavam do lago de Balneário Fantasma) Danilo passou por uma fase introspectiva e se isolou em seu quarto acompanhado apenas de velhas fitas de punk rock que herdara de seu tio suicida.
Aquelas músicas pareciam ter sido feitas sob encomenda para aquela sua fase da vida. Perfeitos consolos e justificativa para toda a “tropicalidade” e “alegria” que não conseguia aceitar em Balneário Fantasma “...um dia você vai descobrir que todos te odeiam e te querem morto...”
A identificação com a cultura punk foi imediata. Um alívio descobrir que existiam outros que pensavam como ele. Passou a não se sentir o único de sua espécie na galáxia – poderia até se reproduzir se tivesse sorte.
À medida que o tempo avançava, as músicas e a cultura punk começaram a modificar não só a sua mente, mas também sua aparência. Quando entrou no ensino técnico foi ao barbeiro disposto a uma mudança radical: “quero estilo moicano”.
O barbeiro entendeu “estilo americano” e ele ganhou um corte parecido com o do cantor Arnaldo Antunes que contribuiu ainda mais para o seu isolamento na escola e comunidade.
A primeira vez que teve um fanzine nas mãos foi quando conheceu os punks em um festival de hardcore onde tocou a lendária banda Genocídio Suicida. Nesta época, Danilo utilizava uma vela de ignição pendurada no pescoço (alternativa barata ao cadeado de Sid Vicious) , uma espécie de protesto contra a indústria automobilística e o capitalismo. Não demorou para mudarem seu nome de Danilo para Punk Vela, ou Vela para os íntimos.
Assim que leu os primeiros fanzines virou fã incondicional desse veículo de comunicação que era a representação escrita do que acreditava. Em pouco tempo passou a colaborar via correio com vários deles. Não demorou para criar o seu próprio fanzine : o Vela Punk.
Danilo se formou no ensino médio e abandonou o corte americano. Agora era mais um trabalhador das raras indústrias que sobraram em Balneário Fantasma, mais precisamente no laboratório químico da Indústria de Sanitários Baunilha.
Com o passar dos anos tornou-se mais eclético e seu gosto estético pela cultura punk passou a abarcar também a chamada cultura alternativa (por favor, não hippie). Agora era colaborador assíduo de uma dúzia de fanzines dos mais variados temas: quadrinhos, música alternativa, punk, ecologia etc. Colaborava com resenhas, charges, quadrinhos e produções gráficas feitas a partir de colagens e xerox que tirava no escritório da firma escondido entre formulários e relatórios do controle de qualidade.
Era sempre uma aventura: Danilo chegava uma hora antes do expediente e ficava de ouvido atento ao portão da firma enquanto fazia suas montagens xerográficas.
Um dia algo de maravilhoso aconteceu.
Danilo estava finalizando uns relatórios na bancada do laboratório quando Evaristo (diretor da Sanitários Baunilha) entrou na sala acompanhado de um rapaz e apontou um canto da sala:
-É aqui que vai ficar.
O rapaz colocou uma caixa cuidadosamente em cima de uma mesa.
-É Danilo, chega do pessoal do laboratório ficar gastando a minha máquina de xerox tirando cópias dos relatórios... Agora o laboratório terá sua própria máquina!
Danilo ficou boquiaberto... Mal podia falar. Seu sonho havia se concretizado. Assistiu em câmera lenta o desembrulhar da máquina, sua instalação e a explicação de seu uso.
Uma semana depois o número um de seu fanzine novo estava pronto e com cinqüenta cópias quentinhas: Candle Days era seu nome.
Com o Candle Days, Danilo abandonou a linha panfletária/didática do Vela Punk e se embrenhou por uma mais autoral: textos, poemas, resenhas e ilustrações. O Candle Day conferiu certa identidade a Danilo que passou a ser reconhecido na cena como um jovem pensador e poeta anarquista. Distribuía seu fanzine gratuitamente em bares, shows, protestos e portas de faculdades.
Com o passar das semanas, Danilo começou a desenvolver uma fixação pela máquina que não demorou a tornar-se uma verdadeira paixão. Além das possibilidades práticas que a máquina oferecia, apreciava seu design moderno, seus botões coloridos, seu visor digital, a velocidade das cópias, suas regulagens de tonalidade, seu cheiro e é claro: a insubstituível sensação prazerosa de desembrulhar um toner novinho... Bons tempos.
A experimentação gráfica de Danilo começou a evoluir. Começou tirando Xerox da própria mão, depois da mão em movimento; mais tarde em um acesso de ousadia tirou uma cópia do próprio rosto (apesar de dizerem que a luz da máquina de xerox cegava). A capa do Candle Days número 2 era seu rosto xerocado em expressão de dor aterrorizante - agora com mais páginas e maior tiragem, patrocinado indiretamente pela Sanitários Baunilha.
A paixão se tornou um vicio: diariamente Danilo chegava pelo menos uma hora mais cedo para ficar a sós com seu objeto de desejo.
Um dia teve um insight ao ver a capa de um disco do cantor Tom Zé. A capa em questão (segundo a lenda) trazia a imagem de uma bolinha de gude delicadamente encaixada no ânus de uma modelo, de modo a parecer-se com um enigmático olho azul. Danilo teve uma idéia que pensou ser genial. Tirar uma fotocópia da própria bunda. É, seria ótimo! Poderia utilizar tal cópia como capa! Faria uma intervenção ou montagem no xerox para parecer outra coisa: uma montanha, um castelo... Seria um segredo como o de Tom Zé. Mal poderia esperar para colocar tal idéia em prática.
Chegou na quarta feira às cinco horas da manhã.
Entrou no laboratório afoito. Abaixou as calças e a cueca e subiu na máquina com cuidado de modo a apoiar a bunda sem forçar o vidro. Sentou-se e levantou os bagos para cima (eles atrapalhariam a composição e simetria da imagem). Apertou o botão: 10 cópias.
Sentia a máquina passando a luz suavemente, lendo sua bunda e gostou daquela sensação: quentinho, confortável. Porque não? 100 cópias.
A luz passando em suas nádegas era relaxante e confortável. Cochilou.
Acordou algum tempo depois. Suas nádegas estavam estranhamente quentes e adormecidas. Olhou o número de cópias no visor da máquina: dois mil novecentos e cinqüenta, dois mil novecentos e cinqüenta e um...
Pensou que era hora de sair de cima da máquina, mas não conseguiu.
Para seu horror sua bunda estava grudada na máquina. Percebeu que havia um leve cheiro de queimado na sala e um barulho de hambúrgueres fritando: sim, sua bunda estava sendo frita pela máquina que aquecera com o número elevado de cópias.
Notou então que as folhas já se espalhavam pelo chão com as reproduções de sua bunda e que tinha dormido mais do que pensava. Já era quase oito horas, horário em que o Diretor Evaristo chegava pontualmente na firma.
Tentou sair. Sua bunda estava grudada no vidro do Xerox, sentiu dor. Tentou sair de ladinho e também não conseguiu. Enquanto tentava sair, a velocidade das cópias aumentava e a luz (antes inocente) que passava por sua bunda atingiu uma velocidade estroboscópica mudando para um tom vermelho ameaçador.
As folhas eram cuspidas em alta velocidade na sala. Começou a suar e para piorar as coisas ouviu o barulho do carro de Evaristo chegando no estacionamento. Tomou então uma atitude extrema.
Pulou da máquina de xerox abruptamente e parte da sua bunda ficou grudada no vidro dela - nunca sentira tanta dor: perdera o topo das nádegas.
Olhou para o vidro da máquina de xerox: os pedaços de sua bunda estavam lá como exatamente dois hambúrgueres grudados em uma chapa de lanchonete mal untada.
O que restou de sua bunda sangrava e as folhas com fotocópias dela forravam o chão do laboratório...
Não teve tempo para pensar: pegou papel toalha e colocou no que sobrava de sua bunda esperando que estancasse o sangramento. Rapidamente começou a recolher os papéis no chão e colocou tudo em sua mochila para eliminar as provas.
A máquina continuava soltando cópias e não conseguia pará-la. Desconectou-a então da tomada.
Pegou uma espátula, raspou os restos de sua bunda que estavam no vidro da máquina e jogou tudo no lixo com muito sofrimento e pesar.
Nesse exato momento Evaristo subiu as escadas e Danilo disfarçou todo aquele absurdo da melhor forma que pode: apoiou-se sobre o balcão do laboratório e fingiu estar analisando relatórios de controle de qualidade.
- Bom dia Danilo! Madrugou de novo? Desse jeito você fica rico, heim?
Evaristo foi tomar café e Danilo ficou no laboratório tentando entender a gravidade do que acontecera.
Mais tarde, quando todos os funcionários chegaram ao laboratório o estagiário percebeu que a máquina ao ser ligada tirava cópias ininterruptamente. Ligaram para a manutenção que chegou no final da tarde.
Depois de muito analisar e arrumar o botão quebrado, o técnico do xerox chamou Evaristo e contou-lhe que o toner que tinha sido substituído no dia anterior já acabara.
Evaristo olhou para todos do laboratório como se procurasse algum culpado. Lembrou-se dos rumores de que os estagiários tiravam cópias de trabalhos da faculdade clandestinamente. Disparou em um acesso de autoritarismo:
-Sabe como é... Nessa porra de laboratório, xerocam tudo! Até o próprio cu! Vou tirar essa merda dessa máquina daqui amanhã mesmo.
Bateu a porta e saiu bufando pelas escadas.
Os funcionários do laboratório entreolharam-se e deram de ombros.
Danilo sentiu-se aliviado porém triste. Sua traquinagem passara desapercebida mas a máquina de xerox sairia do laboratório. E pior: sua bunda estava arruinada para sempre.
E foi assim: traumática e dolorida - como qualquer separação - o fim da paixão de Danilo pela máquina de xerox.