quarta-feira, 12 de novembro de 2008

OS MENINOS E AS PEDRAS

por Flávio Grão



Como todos sabem Balneário Fantasma está situada entre a maior cidade do país e o litoral do estado. A maioria das pessoas a conhecem apenas através das placas das rodovias que passam por ela.
As indústrias foram embora e o povo teve que se virar com novas atividades. A identidade antes construída pelos operários em torno das fábricas e suas lutas sindicalistas não faziam mais sentido na nova realidade – um povo inteiro a vagar procurando um novo motivo para suas existências - muitas vezes a encontrando em uma garrafa de Dieselina: o tradicional destilado local feito com sobras de óleo diesel e raspas de chocolate.

Como alternativa econômica, os políticos e a sociedade civil começaram a reestruturar o entorno do antigo Lago da Neblina como possível ponto de atração para o turismo.

Duas grandes rodovias cruzam Balneário Fantasma. Em suas margens pequeninos pólos econômicos foram criados: borracheiros, pesqueiros, botecos, restaurantes, motéis e boates decadentes.
Esse era o caso do pobre vilarejo do Preá atropelado que contava com no máximo setenta habitantes já no alto da serra e antes da descida para o litoral.

No Vilarejo do Preá atropelado vivia a família de Lucas.
Lucas e seus amigos foram criados na margem da rodovia e desde pequenos um de seus passatempos preferidos era ficar sentados no acostamento olhando os carros: bólidos velozes que passavam pela rodovia com seus interiores hermeticamente lacrados repleto de pessoas brancas como ceras ignorando tudo o que tivesse às margens – inclusive e principalmente eles.

Volta e meia um carro furava o pneu e parava a contragosto. Era sempre um momento rico para Lucas e seus amigos, pois no vilarejo não havia veículos (a não ser a Kombi onde morava o Sr. Galdêncio que dizem que já andou um dia). Nessas situações havia uma regra: nunca se aproximar. Descobriram isso certa vez quando foram oferecer ajuda a um senhor de bigode branco e ele os ameaçou com uma chave de roda.

Lucas e seus amigos descobriram a brincadeira voltando da escola pela margem da rodovia em uma sexta feira.
Naquele dia Lucas tinha tomado um sermão do professor (por ser o único da classe a tirar média D) e seus amigos o cercavam aos gritos com a intenção de irritá-lo:
-Burro! –Burro!
Lucas (que tinha o pavio curto) apelou e começou a atirar pedras neles.
Uma dessas pedras atingiu em cheio o vidro de um carro que trincou de imediato.

O carro brecou e seu motorista desceu aos gritos:
-Seus filhos da...
Antes que ele pudesse acabar o xingamento Lucas e seus amigos já se embrenhavam na mata. Correram até chegar em uma clareira onde desabaram a rir.
Aquele riso cúmplice tinha um significado especial e todos entenderam aquilo no momento em que o veículo parou. Era a descoberta de algo mágico: Mais que um modo de interação com aqueles seres intocáveis era um meio de diálogo com um mundo que teimava em ignorá-los.

Naquele final de semana começaram as travessuras. O local preferido era em uma parte da estrada cavada no meio de um morro de onde poderiam atingir os carros sem serem vistos.
-Este cinza é o meu!
-Aquele grande é meu! Meu!
-Eu quero esse preto!

Com o passar do tempo adquiriram a técnica precisa de atirar as pedras de modo que o vidro dos carros apenas trincasse. Sabiam que se fosse uma pedra muito grande o vidro arrebentaria, como da vez em que a caminhonete derrapou e quase bateu de frente com o ônibus que vinha no sentido contrário. Em seus pensamentos simples sabiam que só queriam atenção. Machucar alguém era errado.

E os carros pertenciam-lhes a partir do momento em que paravam com seus vidros quebrados e seus motoristas tinham reações desencadeadas por suas ações. Adoravam a sensação de controle.

De cima de uma árvore, atrás de uma pedra ou dentro de uma moita, o ápice era ouvir os xingos ou resmungos dos motoristas. Entreolhavam-se e tapavam as bocas sufocando suas gargalhadas cúmplices que só podiam eclodir depois que os carros retomassem seus cursos.

Os meninos colecionavam como figurinhas as diversas reações aos vidros trincados: loucos que desciam do carro e pulavam xingando; mulheres que desciam e xingavam mais ainda; jovens que olhavam incrédulos seu bem danificado. Nenhuma reação era exatamente igual à outra e os meninos comparavam orgulhosos seus feitos:
-O seu carro cinza não foi nada... Legal foi o vermelho que eu acertei... O velho até chorou!
-Legal mesmo foi quando aquele homem do carro amarelo chutou o farol do carro...

Com o passar do tempo a novidade foi diminuindo e o simples trincar dos vidros dos carros já não despertava prazer algum nos meninos.
Foi aí que Lucas matutou em casa uma idéia que julgou ser excepcional.

Uma outra regra que todos eles conheciam é a de que não se devia mexer com os caminhões.
Os caminhoneiros que transitavam naquela região eram vistos como motoristas particularmente perigosos por suas ações insanas como fechar ou pressionar os carros pequenos, brigar nos botecos e não pagar as garotas das boates. Tinham um apetite incomum para confusões e viviam bêbados de Dieselina.

Mas Lucas pensou que envolver os caminhões na brincadeira seria um passo natural e foi o que resolveu fazer naquela tarde de sexta feira.
-Tá doido Lucas?
-Eu sei o que estou fazendo, vamos esconder.
O grande caminhão surgiu no meio da neblina e parecia vir vagarosamente como se trouxesse em sua carga o destino de todos.
O clima era tenso e Lucas tentou relaxar os amigos:
-Esse caminhão preto é meu.

O caminhão se aproximou e a pedra foi arremessada causando uma decepcionante fissura no pára-brisa para alivio de todos.
-Que merda! – Não fez nada!
-Que droga, prefiro atacar nos carros, pelo menos racham!

O caminhão ao invés de uma brecada brusca, parou delicadamente.
Lucas e seus amigos ficaram esperando o motorista descer enfurecido, mas ninguém desceu.

Minutos passaram-se e nada.
De repente a porta abriu-se. Mas ainda assim ninguém desceu.
Lucas ficou intrigado. Tudo acontecera de uma forma totalmente inversa ao que havia previsto.
Mas ele se surpreendeu mesmo quando seus amigos começaram a descer lentamente, um trás do outro pelo barranco e se dirigiram pela estrada ao caminhão que ainda estava parado no acostamento.

Lucas sabia em seu íntimo que não havia o que fazer. Ficou passivamente do alto do barranco acompanhando com os olhos o modo como cada um dos meninos caminhava humildemente arrastando seus chinelos gastos até subir no caminhão.

O último, antes de subir, olhou para trás: um olhar sem foco e sem direção para além de Lucas. Seu rosto não tinha remorso, não tinha nada. Era apenas um rosto cumprindo sua sina. A porta do caminhão se fechou. O motor ligou e ele retomou seu caminho suavemente até que lentamente foi engolido pela neblina no horizonte da serra.

Ninguém nunca mais viu os amigos de Lucas.

Dizem que eles aparecem às vezes em dia de neblina intensa na beira da represa, brincando na areia, correndo e atacando pedras:

...Este cinza é o meu...
...Aquele grande é meu! Meu...
...Eu quero esse preto...

4 comentários:

  1. zinistro!
    Lembro que namorei uma garota que morava no caminho para o vilarejo do Preá atropelado!

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  2. Parece aquele trecho no final da Anchieta, quase na bifurcação pra litoral norte e sul... Só parece...

    Style, Grão!

    ps. a abdução das crianças me lembrou Bruxa de Blair.

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  3. Muito Bacana Grão!!! Me lembrei de quando eu e uma colega esticamos uma fita no meio da avenida...Quem estava nos carros pensava que era um cabo de aço ou sei lá o que...só sei que o efeito foi muito mais catastrófico do que imaginávamos...

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Andarilhos do Underground: ZINAI-VOS!!!